sexta-feira, 23 de maio de 2008

Minha Primeira Enciclopédia

Aprendi a ler aos 6 anos, na 1° série, por instrução de Tia Iracy, minha detestada professora. Tia Iracy era uma velha insuportável, sempre de mau-humor, sempre gritando com os alunos, uma pessoa que, evidentemente, nunca tivera vocação para ensinar, como grande parte dos professores. Mas, bem ou mal, foi ela quem me ensinou a ler, ou melhor, aprendi a ler observando Tia Iracy ensinando os outros alunos, já que nunca senti que ela estivesse tentando ensinar nada a mim diretamente.

Aprendi rápido e peguei um gosto tal pela leitura que me dedicava a ela umas 5 horas por dia, ainda aos 6 anos. Lia qualquer coisa que estivesse na minha frente: gibi, pedaço de jornal catado na rua, livros velhos achados pela casa, catálogo telefônico (ficava lendo os anúncios, as dicas para economizar, etc).

O problema maior era que em casa não tinha muita coisa pra ler, meus pais nunca tiveram o hábito de ler. Eu ficava igual a um peste pedindo para meu pai me levar na banca, para comprar alguma coisa. Ele me levava freqüentemente, mas não adiantava muito porque um gibi a pessoa lê em 20 minutos, e eu queria ter coisa disponível para ler o dia todo. Acabado o gibi, eu voltava para meu desespero de viciado. Saía pela casa procurando qualquer coisa, nem que fosse um jornal de embrulhar verdura jogado no lixo, ou ia ler de novo a lista telefônica (“relação dos códigos para discagem internacional”, eu gostava porque eu aprendia uns nomes de países que não conhecia).

Foi nesse cenário de desespero que algo fabuloso aconteceu. Minha tia Naná, informada do meu estado de miséria e aflição, me trouxe de presente 5 volumes da Enciclopédia Trópico, que estavam abandonados num canto qualquer da casa dela. Foi o melhor presente que recebi em toda a minha vida! Fiquei mais feliz que o Maradona recebendo um pacote de pó no hospital. Tinha coisa ali pra suprir meu vício por um bom tempo.

capa.jpg

A Enciclopédia Trópico é das coisas mais legais para uma criança ler. É toda ilustrada com gravuras coloridas e trata de tudo que é interessante. Exemplos dos “documentários”, que é como se chamam os verbetes da Trópico: o serviço postal, vida de Thomas Edison, mármore, serpentes, as sete maravilhas do mundo antigo, hipopótamo, La Fontaine, as origens da Rússia, o teatro, o telefone, a Via-láctea, ursos, fabricação do vidro, Jerusalém libertada, tosão de ouro, história da habitação, as cartas de jogo, a girafa, Gargântua e Pantagruel, o chumbo, funcionamento do pâncreas, Hércules, as abelhas, os peles-vermelhas, eletromagnetismo.
Lia tudo várias vezes e adorava, principalmente pelo texto. Em nenhum outro lugar eu achava um texto tão legal quanto na Trópico. Leiam este maravilhoso exemplo, o início do Documentário N.º 354, Os Perfumes:

“Se os leitores gostam de romances, irão encontrar, neste que estamos para narrar-lhes, o sugestivo e misterioso encanto das histórias de aventuras.
A história começa nos albores do mundo, quando a Terra, obedecendo às leis do Criador, começava a dar vida a criaturas vegetais feitas de água, de vento, de sol, de poeira das rochas.
Aconteceu, então, que no misterioso trabalho de transformação orgânica que se realizava no seio daquela natureza selvagem, o acre odor de terra recém-saída do caos e aquele dos vapôres que perambulavam pelo espaço, as exalações dos vulcões e das águas em fermentação, se transmudassem, aqui e acolá, em hálitos leves e tênues, brotados dos cálices e de empôlas carnosas: as flores.”

Mais adiante:

“Respirando aquela zona de ar mágico que circunda as belas flores multicores, o homem sente nascer em si a ânsia de agarrar o eflúvio e, como este se evola e desaparece com o vento, ele se põe a refletir sobre a maneira de captar e aprisionar os perfumes.”
Isso sim é literatura infantil, não aqueles livros para retardados que empurram para as crianças.
E as ilustrações da Trópico eram as melhores. Dêem uma olhada:

Pássaro Lira

Aqui vemos o Pássaro Lira, “notável por sua bizarria e beleza”.
“Vive habitualmente isolado, às vezes aos pares, vagueando cautelosamente no coração do bosque. Inicia sua perambulação às primeiras luzes da aurora e não a interrompe senão ao escurecer ; sobrevindo as trevas, desfere um breve vôo e vai empoleirar-se em um ramo baixo, onde transcorre a noite inteira." Não é fantástico o Pássaro Lira, o que vagueia no coração do bosque?


FredericoII.jpg

A gravura ao lado refere-se ao Documentário N.º 368, sobre Frederico da Prússia.
Jovem, Frederico tentou fugir da corte de seu país, pois seu pai, homem bruto, não entendia seu desprezo pela arte militar e suas delicadas aspirações intelectuais. Durante uma viagem, escapou da escolta com seu amigo, o tenente Katte. Logo foram recapturados e devolvidos ao rei. Como punição, Frederico “foi obrigado a assistir o fuzilamento de seu amado amigo, quando chorou e desmaiou”. Vejam como a ilustração representa bem o momento em que o pobre Frederico chora e desmaia. O criado atrás de Frederico já se posiciona para amparar a queda do delicado e quase desfalecido príncipe.


Gauguin02.jpgEsta uma representa o jovenzinho Paul Gauguin (Documentário N.º 471) que, “vivendo em um ambiente familiar não muito tranqüilo, demonstrou desde criança um caráter inquieto e difícil, que o levou, com apenas nove anos, a correr a primeira aventura de sua vida, fugindo de casa”. Não é perfeita a cena? Nunca imaginei diferente uma criança fugindo de casa. Vejam como está triste e indefeso o pobre Gauguin, atravessando um bosque trevoso de Joãozinho & Maria. Toda criança que foge de casa, foge de vara no ombro com uma trouxinha na ponta. O ilustrador não poderia ter feito melhor.

GauguinB02.jpg
Ainda sobre Gauguin, aqui vemos o “pintor de alma nômade e aventureira” no final de sua vida, quando se refugiou no Taiti.
“O clima do Taiti e sua vida desregrada pioraram sempre a insegura saúde de Gauguin. Eis o grande artista, quando surpreendido por um daqueles terríveis ciclones que, freqüentemente, assolavam a ilha.”
Repararam na dramaticidade da cena? O desespero plástico, vital da taitiana que está no quarto com Gauguin? Que estavam “fazendo coisas” quando “surpreendidos por um daqueles terríveis ciclones” fica apenas subentendido.
Há ainda o detalhe de um pobre coitado que corre ao fundo, tentando escapar inutilmente “daquele terrível ciclone”.


Tintoretto.jpg
Nesta cena temos Ticiano expulsando o jovem Tintoretto do seu atelier.
“Tintoretto tornou-se em breve tão hábil que superou a arte do mestre. Dizem, de fato, que Ticiano, com inveja da habilidade do discípulo, expulsou-o do seu atelier.”
Vejam o momento exato em que o vil e invejoso Ticiano expulsa o pobre Tintoretto que, incrédulo, épaté, ainda mistura as tintas na paleta. As roupas negras de Ticiano denunciam seu caráter mesquinho.


lontra.jpg

Mesmo as ilustrações mais prosaicas da Trópico têm um ‘vigôr’ particular. Vejam esta cena de uma lontra caçando, por exemplo. Reparem na expressão feroz da lontra. Nunca uma lontra, animal de feição tão estúpida, foi tão terrível em seu ataque.


Eis o paraíso islamita. “Um encantador lugar de delícias, ele é povoado por huris, belíssimas jovens cujo nome, em língua árabe, significa ‘aquela dos olhos negros’. As huris dançam para os bem-aventurados, cuja vida, no Paraíso, não é privada de prazeres terrenos; realmente, além da companhia das amáveis huris, podem gozar, ainda, de ótimos alimentos e finíssimas bebidas.”
Essa gravura abalou meu catolicismo seriamente. Quem quer tocar harpa pela eternidade depois de saber de um paraíso desses? Gostosas pra caramba, as huris.
paraiso01.jpg

guerreiro-rajput.jpg
Por último apresentamos um guerreiro rajput, a segunda casta em importância entre os hindus. Notem que um rajput é guerreiro o tempo todo, mesmo quando sentado à toa na calçada. Percebemos pela dureza de sua expressão que ele deve passar o dia todo assim, hirto, impávido, esperando que apareça qualquer inimigo para desafiá-lo.
Jamais arrisque a vida contra um guerreiro rajput.




Monteiro Lobato nunca me fez falta, o mundo apresentado pela Trópico já era interessante demais. Não recorria à ficção em busca de maravilhamento; o mundo de verdade - a Trópico me dizia - já era maravilhoso o suficiente.
Só fui atrás de ler ficção com uns 12 anos de idade, mas sem grande entusiasmo.
E, se querem saber, ainda hoje prefiro Marco Polo a qualquer Júlio Verne.

(Ai de quem disser que Marco Polo é ficção!)